segunda-feira, 13 de agosto de 2007

Capítulo VI - A Justificação pela Fé e os Méritos das obras - Institutas (E) Vol 2, pg 187-189.

Capítulo VI - Vol 2, pg 187-189.

A Justificação pela Fé e os Méritos das obras

[1536] Parece-me que já expliquei acima, bastante acuradamente, que resta um refúgio para a salvação dos homens, o qual é a fé, uma vez que pela lei todos eles estão debaixo de maldição. Também me parece que falei suficientemente de que fé se trata, como também disse quais bênçãos ou graças de Deus essa fé comunica ao homem, e quais os frutos que ela produz nele. E o resumo foi que pela fé nós recebemos e temos Jesus Cristo, como ele nos é oferecido pela bondade de Deus, e que, sendo participantes dele, temos dupla graça.

A primeira é que, sendo por sua inocência reconciliados com Deus, temos no céu um Pai deveras clemente, e não um juiz para nos condenar. A segunda é que somos santificados por seu Espírito para refletirmos e programarmos uma vida santa e inculpável.

Pois bem, quanto à regeneração, que é a segunda graça, foi dito o que julguei proveitoso. A justificação foi abordado ligeiramente, porque primeiro é preciso entender que, como a fé não é ociosa e destituída de boas obras, assim por ela obtemos justiça gratuita, graças à misericórdia de Deus; também é necessário entender quais são as obras dos santos, e nisso consiste uma parte da questão de que devemos tratar.

Portanto, agora devemos considerar mais extensamente o tema da justificação pela fé, e fazê-lo lembrando-nos de que este é o principal artigo da religião cristã, para que cada um se empenhe diligentemente em conhecer as soluções a seu respeito. Porquanto não teremos nenhum fundamento para estabelecer a nossa salvação, se não soubermos qual é a vontade de Deus com relação a nós; como também não termos fundamento algum para nos edificar na piedade e nos temor de Deus. Mas a necessidade que temos de entender esta matéria aparecerá melhor em decorrência da informação dada sobre ela. Ora, para que não suceda que sejamos apanhados logo no primeiro passo (o que aconteceria se entrássemos numa discussão sobre algo incerto), devemos explicar primeiro o sentido destas frases: ser justificado pela, ou pelas obras.

Justificado diante de Deis é aquele que é julgado justo perante o juízo de Deus e que é aceito como tendo satisfeito à sua justiça. Porque, assim como a iniqüidade é abominável a Deus, assim também o pecador não pode encontrar graça perante a sua face. Por isso, onde estiver o pecado, lá se manifestarão a ira e a vingança de Deus. Portanto, é justificado aquele que não pode ser tido como pecador, mas, sim, como justo, e que, por essa razão, pode subsistir no trono judicial de Deus, diante do qual todos os pecadores tropeçam e são postos em confusão. Assim como qualquer homem, acusado injustamente, depois de examinado pelo juiz é absolvido e declarado inocente, dizendo-se dele que foi justificado com justiça, assim também diremos que foi justificado diante de Deus o homem que, tendo sido separado do rol dos pecadores, tem Deus por testemunha e comprovador da sua justiça.

Diremos que o homem seria justificado diante de Deus por suas obras, se em sua vida houvesse tal pureza e santidade que mereceria o título de justo diante de Deus; ou então, que seria justificado aquele que, pela integridade das suas obras, pudesse responder e satisfazer ao juízo de Deus. Ao contrário, ser descrito como justificado pela fé aquele que, sendo excluído da justiça das obras, apropria-se da justiça de Cristo pela fé; revestido desta, comparece à presença de Deus, não mais como pecador, mas como justo.

1 Uma justiça mista: imaginária

Todavia, visto que a maior parte dos homens imagina uma justiça mista, pela fé e pelas obras, mostremos também, antes de passarmos a outro ponto, que a justiça da fé difere de tal maneira da justiça das obras que, se uma for estabelecida, a outra será anulada. Diz o apóstolo [Fp 3.8,9] que considera “todas estas coisas” como “esterco, para que possa ganhar a Cristo, e seja achado nele, não tendo a sua justiça, que vem da lei, mas a que vem pela fé em Cristo, a saber, a justiça que vem de Deus pela fé”. Vemos nessa passagem que ele as compara, por contraste, como coisas contrárias, e mostra que é necessário que aquele que quiser obter a justiça de cristo abandone a sua própria. Por isso ele diz, noutro lugar [Rm 10.3], que essa foi a causa da ruína dos judeus, os quais, “procurando estabelecer a sua própria, não se sujeitaram à que vem de Deus”. Se, vestindo a nossa própria justiça, rejeitamos a de Deus, para obter esta é necessário que aquele seja totalmente abolida. É também o que ele quer dizer quando afirma que a nossa jactância “não é excluída pela lei, mas pela fé”. [RM 3.27] Disso decorre que, tendo-se em vista que não há nem uma só gota de justiça em nossas obras, não temos em que nos gloria. Portanto, se a fé exclui toda gloria pessoal, a jsutiça da fé não pode xoexistir com a das obras.¹

Foram os teólogos de Sorbonne que ensoparam o mundo com essa falsa opinião, comumente aceita; mas o abuso deles é duplo. É que eles chamam de fé a certeza de que podem contar com a recompensa dada por Deus, e pelo nome de graça eles não entendem o dom da justiça gratuita que recebemos, mas, sim, a ajuda do Espírito Santo para o homem ter uma vida virtuosa e santa. Eles lêem nos escritos apostólicos que “é necessário que aquele que aproxima de Deu creia que ele existe e que se torna galardoador dos que o buscam”.[Hb 11.6] Mas eles não enxergam a maneira pela qual devemos aproximar-nos de Deus. Isso vamos mostrar logo adiante.

Que eles fazem violência à palavra “graça” vê-se nos seus livros. Pois o seu mestre das sentenças expõe a justiça que temos por meio de Cristo de duas maneiras². Em primeiro lugar, diz ele, a morte de Cristo nos justifica quando gera caridade em nosso coração, e por ela somos feitos justos. Em segundo lugar, por ela é extinto o pecado, sob o qual o Diabo nos mantinha cativos; e de tal modo é extinto que já não pode dominar-nos. Vemos que o mestre das sentenças não leva em consideração a graça de Deus, a não ser no sentido de que somos dirigidos nas boas obras pelo poder do Espírito Santo. Ele teve a intenção de seguir a opinião de Agostinho, mas a segue de muito longe, e na verdade se desvia grandemente da fiel imitação. Porquanto o que é dito claramente por este santo homem, ele obscurece; e o que este apresenta leve mancha de erro, ele corrompe totalmente. As escolas sorbonistas vão sempre de mal a pior, e acabam tropeçando no erro de Pelágio.


Nota:
¹ “Fora de Cristo não há justiça alguma, nem salvação e, em suma, nem mérito.” [João Calvino, Efésios (Ef 2.3), p. 54]
² Lib III, sent., dist. 19, c. I.

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Autor: João Calvino
Fonte: As Institutas da Religião Cristã, edição especial, ed. Cultura Cristã, Vol 2, pg 187-189.

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