Capítulo V - Vol 2, pg 129-132
O Arrependimento
O Arrependimento
[1539] Depois das considerações sobre a fé, é necessário falar subsequentemente sobre o arrependimento, visto que este não somente é parte integrante da fé, mas também é gerado por esta. Porque, assim como a graça e a remissão dos pecados são apresentadas ao pecador pela pregação do evangelho para que, sendo libertado da miserável servidão do pecado e da morte, seja transferido para o reino de Deus, segue-se que ninguém pode receber a graça do evangelho pela fé, sem que volte atrás em sua vida extraviada, tome o caminho reto e se dedique com todo o empenho a refletir no verdadeiro arrependimento.
1. O que vem antes?
Os que julgam que o arrependimento precede à fé, e não que dela procede, são movidos a isso por uma razão muito superficial. Cristo, dizem eles, e João Batistas, em seus sermões, exorta primeiro ao arrependimento e depois dizem que o reino de Deus está próximo. Essa instrução, dizem eles, é baixada aos apóstolos, e essa ordem de fatores é seguida pelo apóstolo Paulo, nos termos em que é citado pelo evangelista Lucas. Mas eles ficam supersticiosamente presos à ordem das sílabas; não levam em conta o propósito das sentenças e como são colocadas juntas. Porque, quando Jesus Cristo e João batista fazem esta exortação, “Arrependi-vos, porque está próximo o reino dos céus”, não deduziram que a causa do arrependimento está no fato de que Jesus Cristo nos oferece graça e salvação? Por isso, aquelas palavras valem como se eles tivessem dito: “Visto que o reino dos céus está próximo, arrependei-vos”. O próprio apóstolo Mateus, tendo citado essa pregação de João Batista, registra que com ela se cumpriu a profecia de Isaías [Mt 3.2,3] referente à “Voz do que clama no deserto: ‘Preparai o caminho do Senhor; endireitai no ermo vereda a nosso Deus’.”[Is 40.3] Ora, a ordem do profeta é que a voz deveria começar por consolações e por notícia alegre. Não obstante, quando dizemos que a origem do arrependimento está na é, não temos a intenção de dizer que haja algum intervalo de tempo no qual ele deixe de ser gerado, mas queremos dizer que o homem não pode aplicar-se retamente ao arrependimento se não reconhecer que pertence a Deus. Ora, ninguém pode concluir que pertence a Deus, a não ser que primeiro tenha reconhecido a sua graça. Mas estas coisas serão mais claramente deduzidas conforme avançarmos neste estudo.
Ademais, os que inventam nova modalidade de Cristianismo, exigindo do candidato ao batismo alguns dias de arrependimento antes de ser recebido à comunhão da graça do evangelho, não têm nenhuma analogia de apoio ao se erro e à sua tolice. Refiro-me a muitos anabatistas, e principalmente àqueles que gostam de ser chamados espirituais. Mas essas coisas são frutos produzidos por um certo espírito de cegueira frenética, que ordena que se exercite o arrependimento uns poucos dias, quando o cristão deve continuar essa prática durante toda a sua vida.
2. Componentes do arrependimento
[1536] Alguns homens sábios, e isso há muito tempo, querendo pura e simplesmente alar do arrependimento segundo a regra da Escritura, diziam que ele consiste de duas partes, quais sejam: a mortificação e a vivificação. E interpretavam a mortificação como uma dor e um terror do coração, forma de sentir que se concebe pelo conhecimento do pecado e pelo senso do juízo de Deus. Porque, quando alguém é induzido ao verdadeiro conhecimento do se pecado, começa então a odiá-lo e a detestá-lo. Aí ele verdadeiramente se desgosta consigo mesmo em seu coração, confessa-se miserável e confuso, envergonhado, e aspira a ser o que não é. E mais, se sente tocado pelo sentimento do juízo de Deus (porque um se segue imediatamente ao outro), humilhado, aterrorizado e abatido, ele reme, perturbar-se e perde toda a esperança. Eis ai a primeira parte do arrependimento, que se chama contrição. Os homens acima citados interpretam a vivificação como uma fortalecedora consolação produzida pela fé. Isso acontece quando o homem, confuso e envergonhado pela consciência do seu pecado e atingido pelo temor de Deus, pondo os olhos na bondade e na misericórdia de Deus, na graça e na salvação que há em Jesus Cristo, reanima-se, respira, toma coragem, e se sente como pouco menos que retornado a morte à vida.
3. Duas espécies de arrependimento
Outros, vemos na Escritura diferentes nomes para o que estudamos aqui, falam e duas espécies de arrependimento. E, para distinguir entres elas, a um chamam legal, pela qual o pecador, angustiado pelo duro castigo imposto ao se pecado, e como que partido ou quebrado pelo terror da ira de Deus, permanece preso a essa perturbação, sem poder se desentravar. A outra espécie eles chama de arrependimento evangélico, pelo qual o pecador, estando lamentavelmente ensimesmado e aflito, não obstante levanta-se e eleva-se, abraçando a Jesus Cristo como o remédio para a sua chaga, o consolo para o terror que o abate, o bom porto para o abrigar em sua miséria. Caim, Saul, Judas [Gn 4.8-16; 1Sm15; Mt 27.3-5] são exemplos do arrependimento legal. Quando a Escritura nos descreve o arrependimento deles, ela entende que, depois de conhecerem a gravidade do seu pecado, temeram a ira de Deus, mas, só pensando na vingança e no juízo de Deus, deixaram-se dominar por esse pensamento. Portanto, o seu arrependimento não é nada mais nada menos que o portal do inferno. Nele entrando desde a presente existência, já começaram a sofrer o peso da ira da majestade de Deus.
4. O arrependimento evangélico
Vemos o arrependimento evangélico em todos aqueles que, depois de feridos pelo aguilhão do pecado, firmados, porém, na confiança na misericórdia de Deus, voltam a ele. Ezequias turbou-se, tendo recebido a mensagem de que ia morrer, mas, chorando, orou e, considerando a misericórdia de Deus, recobrou a confiança [2Rs20.1-11]. Os ninivitas se apavoraram ante a terrível declaração da sua ruína [Is 37]; mas, cobrindo-se de pano de saco e de cinzas, oraram, na esperança de que o Senhor mudasse da idéia e se desviasse do furor da sua ira [Jn 3]. Davi confessou que tinha pecado gravemente quando fez o recenseamento do povo, mas acrescentou: “Ó Senhor, peço-te que perdoes a iniqüidade do teu servo” [2Sm 24.10,25]. À repreensão feita por Nata, Davi confessou o crime de adultério e se prostrou diante de Deus [2Sm12.13], mas igualmente recebeu perdão. Assim foi o arrependimento dos que, tendo ouvido a pregação de Pedro, confrangeram-se de coração, mas, confiantes na bondade de Deus, clamaram: “Quem faremos, irmãos?”[At 2.37] Dessa natureza foi também o arrependimento do apóstolo Pedro que “chorou amargamente” [Lc 22.62], mas não perdeu a esperança.
5. Que é arrependimento?
Embora sejam verdadeira todas estas coisas, e são, todavia, visto que as posso aprender da própria Escritura, é necessário, por outro lado, entender o que significa arrependimento. Pois, confundir a fé com o arrependimento é um erro repudiado pelo que diz o apóstolo Paulo em Atos, quando declara que, diante do juiz de vivos e de mortos, ele vinha “testificando tanto a judeus como a gregos o arrependimento para com Deus e a fé em nosso Senhor Jesus Cristo” [At 20.21; cf. At 10.42]. Nessa passagem, o apóstolo fala da fé e do arrependimento como coisas diferentes. E então? O verdadeiro arrependimento pode subsistir sem a fé: Não. Mas, conquanto não seja possível separá-los, é possível distinguir-los. Porque, assim como a fé não pode existir sem a esperança, sendo que, contudo, a fé e a esperança são diferentes, assim também, semelhantemente, o arrependimento e a fé, embora entretecidos por um laço que não se pode desfazer, melhor será uni-los que confundi-los.
6. Abrangência do Arrependimento
[1539] Não ignoro que, com o nome de arrependimento, abrange-se a conversão completa, da qual a fé é uma das partes componentes. Mas, quando forem explicadas a natureza e a propriedade dele, ficará patente em que sentido se diz isso. A palavra hebraica para significar arrependimento quer dizer conversão; a dos gregos significa mudança de conselho ou propósito e de vontade e, de fato, a realidade não corresponde mal a esses vocábulos. Sim, pois, em suma, arrependimento significa que nos retiramos de nós mesmos e nos convertemos a Deus, e, tendo abandonado a nossa primeira forma de pensar e de que querer, assumimos uma nova. Por isso, em minha opinião, podemos defini-lo apropriadamente desta maneira:
7. Definição de arrependimento
[1536] O arrependimento é uma verdadeira conversão da nossa vida para servir a Deus e para seguir o caminho por ele indicado. Procede de um legítimo temor de Deus, não fingido [Ex 18], e consiste na mortificação da nossa carne e do nosso velho homem, e na vivificação do Espírito.
Nesse sentido, devem ser tomadas todas as exortações dos profetas e dos apóstolos, pela quais eles admoestavam os homens do seu tempo concitando-os ao arrependimento. Porque desejavam levá-los ao ponto em que, estando confusos e envergonhados de seus pecados, e aflitos pelo temor do juízo de Deus, se humilhassem e se prostrassem diante da majestade divina por eles ofendida, e adentrassem o reto caminho. Portanto, quando eles falam em que o pecador deve converter-se e voltar ao Senhor, arrepender-se e comprovar na prática o seu arrependimento, eles sempre tendem para em mesmo fim. O apóstolo Paulo e João batista dizem que é preciso produzir frutos dignos de arrependimento, entendendo que o pecador arrependido deve levar uma vida que mostre e testifique, em todas as suas ações, a pretendida mudança.
Aqui são apenas as quatros primeiras páginas do capítulo V da Institutas – Edição especial. Calvino continua a desenvolver este assunto. Compre este maravilhoso livro em http://www.cep.org.br de seqüência a leitura.
Autor: João Calvino
Fonte: As Institutas da Religião Cristã, edição especial, ed. Cultura Cristã, Vol 2, pg 129-132.
Nenhum comentário:
Postar um comentário