Capítulo XVI - Vol 4, pg 144-148
Sobre o Governo Civil
Sobre o Governo Civil
1. Transição do governo eclesiástico para o governo civil. Distinção
[1536] Sendo, pois, que foram constituídos para o homem dois regimes e que já falamos suficientemente sobre o primeiro, que reside na alam, ou no homem interior, e que concerne à vida eterna, aqui se requer que também exponhamos claramente o segundo, que visa a unicamente estabelecer uma justiça civil e aperfeiçoar os costumes exteriores.
Primeiro, antes de avançar no assunto, devemos recordar a distinção anteriormente exposta para não suceder o que comumente sucede com muitos, o erro de confundir inconsideradamente as duas coisas, as quais são totalmente diferentes. Porque eles, quando ouvem no evangelho a promessa de uma liberdade que não reconhece rei nem senhor entre os homens, mas se atém unicamente a Cristo, acham que não gozarão nenhum fruto essa liberdade enquanto virem algum poder acima deles. E pensam que nada irá bem, a não ser que todo o mundo se converta a uma nova forma, na qual não haja nem julgamentos, nem leis, nem magistrados nem coisa alguma semelhante pela qual considerem que a sua liberdade está sendo impedida. Mas quem souber discernir entre corpo e alma, entre esta presente vida transitória e a vida por vir, que é eterna, entenderá igualmente muito bem que o reino espiritual de Cristo e a ordem civil são coisas muito diferentes.
Visto, pois, que é uma loucura judaica cercar e encerrar o reino de Cristo sob os elementos deste mundo, e nós, antes, pensamos (como a Escritura nos ensina amplamente) [Gl 5; 2Co 7.21] que o fruto que nos cabe receber da graça de Cristo é espiritual, cuidemos zelosamente de manter dentro dos seus limites esta liberdade, a qual nos é prometida e oferecida em Cristo. Pois, por que é que o próprio apóstolo que nos ordena que não ordena que não nos submetamos de novo “a jugo de escravidão”, noutra passagem ensina que os servos não devem preocupar-se com o estado no qual estejam, sendo que a liberdade espiritual pode muito bem subsistir na servidão civil? Nesse sentido também devem ser entendidas outras declarações que ele faz, quais sejam: que no reino de Deus “não pode haver judeu nem grego; nem escravo num liberto; nem homem nem mulher” [Gl 3.28]. E igualmente: “não pode haver grego nem judeu, circuncisão nem incircuncisão, bárbaro, cita, escravo, livre; porém Cristo é tudo em todos” [CL 3.11]. Com essas sentenças Paulo quer dizer que é indiferente a condição a que pertencemos entre os homens, ou qual a nação a cujas leis devemos obediência, visto que o reino de Cristo não se localiza nestas coisas.
2. A distinção feita não autoriza a negligência quanto aos deveres civis e cívicos
Todavia, esta distinção não tem como finalidade levar-nos a considerar que as determinações legais relacionadas com práticas manchadas pelo mal não dizem respeito aos cristãos. É a pura verdade que alguns amantes de utopias hoje em dia falam dessa maneira, isto é, afirmam que, como fomos mortos por Cristo para os elementos deste mundo e fomos transferidos para o reino de Deus, para as realidades celestes, devemos considerar como coisa vil e indigna da nossa excelência ocupar-nos dessas solicitudes imundas e profanas concernentes aos negócios deste mundo, dos quais os cristãos devem ficar longe e totalmente afastados. “Para que servem as leis”, dizem eles, “não havendo litigantes nem julgamentos? E que é que têm que ver os litigantes com o homem cristão? E mesmo considerando a proibição de matar, com que propósito nós haveríamos de ter leis e julgamentos?” Mas, como pouco acima advertimos que essa espécie de regime é diferente do reino espiritual e interior de Cristo, também nos é necessário saber, por outro lado, que de forma alguma o repugna.
3. O cristão neste mundo aspirar à eternidade
Dizemos o que acima foi dito porque o reino espiritual já na terra nos faz sentir certo gosto do reino celestes, e nesta vida mortal e transitória certo gosto da bem-aventurança imoral e incorruptível. Mas o objetivo do reino temporal é fazer que possamos adaptar-nos à companhia dos homens durante o tempo que nos cabe viver entre eles, estabelecer os nossos costumes em termo de uma justiça civil, viver em harmonia uns com os outros, e promover e manter paz e tranqüilidade comum. Reconheço que todas estas coisas seriam supérfluas, se o reino de Deus, que ora se matem em nós, anulasse a presente existência. Mas se é da vontade de Deus que caminhemos na terra enquanto aspiramos à nossa verdadeira pátria, a se, ademais, tais acessórios são necessários nessa viagem para lá, os que querem separá-los do homem vão contra a sua natureza humana.
Porque, no tocante ao que os tais sonhadores alegam, que deve existir na igreja uma perfeição tal que seja suficiente para cobrir todas as leis, ou que as torne dispensáveis , é pura imaginação deles tal perfeição; jamais se poderá encontrar na comunidade dos homens. Pois, se a insolência dos maus é tão grande e a maldade tão rebelde que a duras penas se pode manter a ordem pelo rigor das leis, que se poderá esperar deles, se descobrirem que gozam de desenfreada liberdade para a prática do mel? Pois é preciso um esforço enorme para à força contê-los e impedi-los de praticar o mal!
4. Alguns benefícios do governo civil
Haverá, porém, logo adiante, um espaço mais oportuno para se falar da utilidade do governo civil. No presente, queremos tão-somente dar a entender que, querer rejeitá-lo é uma barbárie desumana, pois que a sua necessidade entre os homens não é menor que a de pão, água, sol e ar, e a sua dignidade é muito maior ainda. Porque não se relaciona apenas com o que os homens comem, bebem e buscam para o seu sustento (se bem que abrange todas estas coisas, tornando possível aos homens viverem juntos). Contudo, não se limita a isso, mas também visa a benefícios como os seguintes: impedir que a idolatria, as blasfêmias contra o nome de Deus e contra a sua verdade, e outros escândalos relacionados com a religião sejam publicamente fomentados e semeados entre o povo; velar para que a tranqüilidade pública não seja perturbada; proteger a propriedade de cada um; vigiar para que os homens façam seus negócios sem fraude nem prejuízo; em suma, que possa expressar-se uma forma pública da religião entre os cristãos, e que a humanidade subsista entre os seres humanos.
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Autor: João Calvino
Fonte: As Institutas da Religião Cristã, edição especial, ed. Cultura Cristã, Vol 4, pg 144-148.
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