segunda-feira, 13 de agosto de 2007

Capítulo VIII - A Predestinação e a Providência de Deus - Institutas (E) Vol 3, pg 37-46.

Capítulo VIII - Vol 3, pg 37-46.

A Predestinação e a Providência de Deus

Consideramos agora o seguinte: tendo-se em vista o fato de que a Aliança da Vida não é pregada igualmente por todos, vê-se nessa diversidade um admirável mistério do juízo de Deus. Não há dúvida nenhuma de que essa variedade atende ao seu beneplácito, agrada ao se querer. Pois bem, como é evidente que isto é feito pela vontade de Deus – que a salvação é oferecida a uns e os outros são deixados de lado – daí decorrem grandes e altas questões, as quais só se resolvem ensinando aos crentes o que eles podem compreender da eleição e da predestinação de Deus.

1. Divisa da Matéria

Esta matéria compõe-se de duas partes. Primeiramente, devemos resolver a questão sobre o motivo pelo qual uns são predestinados para a salvação e outros para a condenação. Depois é preciso demonstrar como o mundo é governado pela providência de Deus, visto que tudo o que se faz depende da sua ordenação e do seu comando.

Antes, porém, de tratar desse argumento, devo fazer um estudo preliminar sobre as duas classes de pessoas. Porque, além de o presente tema ser em si mesmo um tanto obscuro, a curiosidade dos homens o torna complexo e complicado, e mesmo perigosos. Por quê? Porque o entendimento humano não pode refrear-se e conter-se, mas sempre tende a desgarrar-se, metendo em grandes desvios e rodeios, e a subir alto demais em suas pretensões. Seu desejo é, de possível, não deixar nenhum segredo de Deus se, a sua investigação minuciosa. Pois vemos muitos caírem nessa audácia e nessa presunção. Além disso, muitos há que não são maus, mas que carecem da nossa admoestação do sentido de se dominarem e se controlares nesta área.

Em primeiro lugar, então, quando os homens quiserem fazer pesquisa sobre a predestinação, é preciso que se lembrem de entrar no santuário da sabedoria divina. Nesta questão, se a pessoa estiver cheia de si e se intrometer com excessiva autoconfiança e ousadia, jamais irá satisfazer a sua curiosidade. Entrará num labirinto da qual nunca achará saída. Porque não é certo que as coisas que Deus quis manter ocultas e das quais ele não concede pleno conhecimento sejam esquadrinhadas dessa forma pelos homens. Também não é certo sujeitar a sabedoria de Deus ao critério humano e pretender que este penetre a sua infinidade eterna. Pois ele quer que a sua altíssima sabedoria seja mais adorada que compreendida (a fim de que seja admirada pelo que é). Os mistérios da vontade de Deus que ele achou bom comunicar-nos, ele nos testificou em sua Palavra. Ora, ele achou bom comunicar-nos tudo o que viu que era do nosso interresse que nos seria proveitoso.

Se alguma vez nos ocorreu ou nos ocorrer este pensamento: que a Palavra de Deus é o único caminho que nos leva a inquirir tudo quanto nos é lícito conhecer sobre ele; e mais, que ela é a única luz que nos ilumina para contemplarmos tudo quanto nos é lícito ver – ela nos poderá manter afastados de toda atitude temerária. Porque saberemos que, saindo dos limites próprios, caminharemos fora do caminho e vagaremos na escuridão total. E assim só poderemos errar, tropeçar e nos ferir a cada passo. Tenhamos, pois, em mente que será uma loucura querer conhecer todas as coisas relacionadas com a predestinação, exceto o que nos é dado na Palavra de Deus. Estejamos igualmente apercebidos de que, se alguém quiser caminhar por entre as rochas inacessíveis, irá mergulhar nas trevas.

2. Certa Ignorância é mais douta que o saber

E não nos envergonhemos por ignorar algo deste assunto, no qual há certa ignorância mais douta que o saber. Melhor faremos em dispor-nos a abster-nos de um conhecimento cuja exibição é estulta e perigosa, e até mesmo perniciosa. Se a curiosidade da nossa mente nos solicitar que investiguemos tudo, sempre temos em mãos esta sentença para rebater essa pretensão: “Quem esquadrinhar a majestade de Deus será oprimido por sua glória”. Muito bom será que nos desenterremos dessa audácia, pois vemos que ela n~so no pode fazer outra coisa senão precipitar-nos na desgraça.

3. O outro extremo: omissão negligente

Por outro lado, há outros que, desejando remediar esse mal, esforçam-se para fazer com que a lembrança da predestinação seja enterrada; quando menos, eles nos advertem de que tomam cuidado para não inquirir nada a respeito dela, considerando-a uma coisa perigosa. Embora seja louvável a modéstia de queremos abordar os mistérios de Deus com grande sobriedade, descer tão baixo nisso não dá bom resultado para os espíritos humanos, porque estes não se deixam domar tão facilmente.

4. O equilíbrio da Escritura

Por isso, para que tenhamos aqui bom equilíbrio, devemos examinar a Palavra de Deus, na qual temos excelente regra para o entendimento firme e correto. Porquanto, a Escritura é a escola do Espírito Santo, na qual assim como nada que seja útil e salutar conhecer é omitido, assim também não há nada que nela seja ensinado que não seja válido e proveito saber.

Portanto, devemos ter o cuidado de não impedir os crentes de procurarem saber o que há na Escritura sobre a predestinação, para não parecer que desejamos fraudá-los negando-lhes o bem que Deus lhes comunicou, ou que pretendemos discutir com Espírito Santo, como se ele tivesse divulgado coisas que faria bem em suprimir.

Permitamos, pois, que o cristão abra os ouvidos e o entendimento para toda doutrina dirigida a ele por Deus. Isso com a condição de que ele sempre mantenha este equilíbrio, esta moderação: quando vir fechada a santa boca de Deus, feche também o caminho da inquirição. Eis um bom marco memorial da sobriedade: se em nossa aprendizagem ou em nosso ensino seguirmos a Deus, tenhamo-Lo sempre adiante de nós. Contrariamente, se ele para de ensinar, paremos de querer continuar a ouvir e a entender. Então, o perigo que a boa gente que citei teme não é tão importante que deva lavar-nos a deixar de prestar atenção em Deus, em tudo quanto ele diz. Reconheço que os homens maus e blasfemos depressa encontram na doutrina da predestinação coisas para acusar, torcer, remoer e zombar. Mas, se cedermos à sua petulância, eles darão fim aos artigos da nossa fé, dos quais não deixarão um só que não fique contaminado por suas blasfêmias. Um espírito rebelde se porá a campo e, tanto ousará negar que numa só essência de Deus há três Pessoas, como também que, quando Deus criou o homem, previu o que lhe aconteceria no futuro. Semelhantemente, esses maus elementos não se absterão de rir-se quando lhes for dito que não faz muito mais que cinco mil anos que o mundo foi criado. Por que vão querer que lhes expliquemos como é que Deus ficou ocioso por tão longo tempo. Para reprimir tais sacrilégios, devemos deixar de falar da divindade de Cristo e do Espírito Santo? Devemos calar-nos sobre a criação do mundo?

Antes, muito ao contrário, a verdade de Deus é tão poderosa, tanto nesta questão como em tudo mais, que não teme a maledicência dos ímpios. O que Agostinho confirma muito bem em sua pequena obra intitulada Sobre o Benefício da Perseverança (“Du bien de persévérance”). Porque vemos que os falsos apóstolos, ridicularizando e difamando a doutrina do apóstolo Paulo, nada mais puderam fazer do que se tornarem objeto de vergonha.

5. Velhas Objeções

Há alguns que consideram esta discussão perigosa, mesmo quando mantida entre os crentes. Dizem eles que a doutrina da predestinação é contraria às exortações. Abala a fé, perturba os corações e os abate. Mas essa alegação é fútil. Agostinho não dissimula o fato de que era criticado pelas razões acima citadas, pois ele pregava livre e abertamente a predestinação. Mas, com facilidade os refutou suficientemente. Quanto a nós, visto que fazem objeção com diversos absurdos contra a doutrina que apresentamos, melhor será deixar para resolver, mas adiante, uma por vez. Por ora, desejo conseguir que todos os homens, em geral, se juntem a nós neste propósito: que não procuremos as coisas que Deus quis manter ocultas, e que não negligenciemos as que ele tornou manifesta. Isso para que, por um lado, não sejamos acusados de curiosidade exagerada, ou, por outro, de ingratidão. Neste sentido, esta sentença de Agostinho é muito boa: “Podemos seguir com segurança a Escritura, a qual condescende com a nossa pequenez, como a mãe condescende com a pequenez do seu bebê, quando quer ensiná-lo a andar”.

6. Definição de termos

Os antigos explicavam diferentemente os vocábulos presciência, predestinação, eleição e providência. Nós, deixando de lado toda discussão supérflua, seguimos simplesmente a propriedade dos termos. Quando atribuímos presciência a Deus, queremos dizer que todas as coisas sempre estiveram e continuam estando sob os seus olhos, de modo que para o seu conhecimento não há nada que seja futuro ou passado. Todas as coisas lhe são presentes, e de tal modo presente que ele não as imagina como que mediante algumas espécies ou categorias, como acontece com as coisas que temos na memória e que, lembrando-as, vêm diante dos nossos olhos pela imaginação, mas as vê e as observa real e verdadeiramente, como estando diante do seu rosto. Dizemos que este pré-conhecimento abrange toda a área do universo e todas as criaturas.

Denominamos predestinação o conselho eterno de Deus pelo qual ele determinou o que deveria fazer com cada ser humano. Porque ele não criou todos em igual condição, mas ordenou uns para vida eterna e os demais para a condenação eterna. Assim, conforme a finalidade para a qual o homem foi criado, dizemos que foi predestinado para a vida ou para a morte.
O uso conseguiu impor que se chame providência à ordem que Deus segue no governo do mundo e na direção e condução de todas as coisas.

7. A doutrina da predestinação

Em primeiro lugar, trataremos da predestinação. Conforme o que a Escritura mostra claramente, dizendo que o Senhor constituiu uma vez por todas, em seu conselho eterno e imutável, aqueles que ele quis tornar para a salvação, e aqueles que ele quis deixar em abandono. Quando aos que ele chama para a salvação, dizemos: que ele os recebe por sua misericórdia gratuita, sem levar em conta a dignidade deles; que, ao contrário, o acesso à vida é vedado a todos aqueles que ele quis deixar entregues à condenação; e que isso é realizado por seu juízo oculto e incompreensível, conquanto justo e imparcial. Ensinamos, ademais, que a vocação dos eleitos é como uma demonstração e um testemunho da sua eleição. Semelhantemente dizemos que a justificação deles é outro símbolo e sinal dela, até quando eles chegarem à glória, na qual se dará o seu cumprimento e a sua consumação.

Pois bem, assim como o Senhor assinala aqueles que ele escolheu chamando-os e justificando-os, assim também, ao contrário, privando os réprobos do conhecimento da sua Palavra, ou da santidade realizada pelo seu Espírito, ele demonstra por tal sinal qual será o fim deles, e que julgamento está preparado para eles. Deixo de lado, nesta altura, muitas fantasias forjadas por números tolos, na tentativa de derrubar a predestinação. Vou restringir-me unicamente a considerar os argumentos deles que têm lugar entre pessoas dotadas de saber, ou que poderiam gerar escrúpulos entre os simples, ou, ainda, que têm alguma aparência de verdade, podendo fazer crer que Deus não é justo, se assim o considerarmos.

O que ensinamos sobre a eleição gratuita dos crentes não é dito sem dificuldade. Porque em geral se considera que o Senhor distingue entre os homens segundo prevê os méritos de cada um deles. Assim sendo, ele adota e introduz no número dos seus filhos aqueles cuja natureza ele prevê que deve ser tal que eles não são indignos da sua graça. Ao contrário, dizem os tais mestres, Deus deixa na perdição aqueles que ele sabe que devem ser inclinados à maldade oi à impiedade. Essa opinião, comumente aceita nesses termos, não pertence somente à gente comum do povo; em todos os tempos, ela tem tido a seu favor grande escritores. O que eu declaro francamente, a fim de que não se pense que isso prejudicará muito a nossa causa, se acontecer contra nós.

Porque a verdade de Deus é tão clara neste campo que não poderá ser obscurecida; e tão certa e firme que não poderá ser abalada por nenhuma autoridade dos homens. Certamente o apóstolo Paulo, ao nos ensinar que “fomos eleitos em Cristo antes da criação do mundo” [Ef 1.4], elimina toda e qualquer consideração por nossa dignidade ou merecimento. É como se disse: visto que na semente universal de Adão, o Pai celestial não encontrou nada que fosse digno da sua eleição, dirigiu o olhar para o seu Cristo, a fim de eleger, como membros do seu corpo, aqueles que ele quis admitir à vida. Fique pois definido e estabelecido este argumento entre os crentes: que Deus nos adotou em Cristo para sermos seus herdeiros, porque em nós mesmos não tínhamos capacidade para alcançar tão excelente posição. Isso o apóstolo registra igualmente bem noutro lugar, quando exorta os colossenses a darem graças a Deus por havê-los feito idôneos para participarem da herança dos santos [Cl 1.12]. Se a eleição de Deus precede a esta graça pela qual ele nos torna idôneos para obtermos a glória da vida futura, que encontrará ele em nós que o mova a eleger-nos?

O que pretendo mostrar ficará ainda mais bem expresso por esta outra sentença: Deus nos escolheu, diz ele, “antes da fundação do mundo, para sermos santos e irrepreensíveis perante ele; e em amor nos predestinou para ele, para a adoção de filhos, por meios de Jesus Cristo, segundo o beneplácito de sua vontade” [Ef 1.4,5]. Paulo coloca o beneplácito de Deus em oposição a todos os méritos que se possa mencionar, porque, onde quer que reine o beneplácito de Deus, nenhuma obra entra em consideração. É certo que ele não trata disso nessa passagem, mas devemos entender essa comparação nos termos em que ele a explica noutro lugar, quando diz: Deus “nos salvou e nos chamou com santa vocação; não segundo as nossas obras, mas conforme a sal própria determinação e graça que nos foi dada em Cristo Jesus, antes dos tempos eternos” [2 Tm 1.9]. As palavras que na passagem de Efésios ele acrescenta (“para sermos santos e irrepreensíveis”) não nos livram totalmente de inquietação. Sim, pois, se dissermos que Deus nos escolhe porque previu que seríamos santos, estaremos invertendo a ordem seguida pelo apóstolo Paulo.

8. Sumário certo e seguro

Podemos então afirmar com segurança: visto que ele nos escolheu a fim de que fôssemos santos, logo não foi porque previu que haveríamos de ser santos. Porque as duas coisas são contraditórias entre si: que os crentes obtenham a sua santidade graças a sua eleição; e que por essa santidade eles tenham sido eleitos. As astúcias sofísticas a que os tais mestres recorrem não têm nenhum valor aqui. No presente caso, eles dizem que, embora Deus não recompense os méritos anteriores À graça da eleição, ele os recompensa pelos méritos futuros. Mas logo se vê que quando se diz que os crentes foram escolhidos para serem santos, significa que toda a santidade que eles haveriam de ter tem sua origem e seu início na escolha. E com que tipo de coerência se poderá dizer que o que é produto de eleição seja a causa desta? Além disso, o apóstolo confirma com ainda maior firmeza o que tinha dito, acrescentando que Deus nos escolheu conforme decreto da sua vontade, que ele determinou em si mesmo. Isso equivale a dizer que ele não considerou coisa alguma fora de si mesmo à qual desse atenção, quando procede a essa deliberação. Por isso Paulo acrescenta, logo a seguir, que tudo aquilo em que se resume a nossa eleição tem que ver com este objetivo: “para louvor da glória de sua graça”. Certamente a graça de Deus só merece ser exaltada em nossa eleição se for gratuita. Ora, não seria gratuita se Deus, ao escolher os seus, atribuísse algum valor às obras de cada pessoas eleita. Daí se vê que o que Cristo disse aos seus discípulos é verdade aplicável a todos os crentes. Disse ele: “Não fostes vós que me escolhestes a mim; pelo contrário, eu vos escolhi a vós outros” [Jo 15.16]. Com isso ele não somente exclui todos os méritos anteriores, mas também quer dizer que eles não tinham nada em si mesmos que desse motivo para serem escolhidos, pois ele se antecedeu a eles com a sua misericórdia. Nesse sentido devemos também tomara estes dizeres do apóstolo Paulo: “Quem primeiro deu a ele para que lhe venha a ser restituído?” [Rm 11.35] Porque ele quer mostrar que a bondade de Deus de tal maneira se antecipa aos homens que ela não encontra nada neles, nem quanto ao passado nem quanto ao futuro, que lhes possibilites cooperar com ela.

9. Ilustra baseada em Jacó e Esaú

Acresce que, na Epístola aos Romanos, onde Paulo começa este argumento do ponto mais alto e depois lhe dá seqüência mais ampla, ele trata, sob o exemplo de Jacó e Esaú, da condição dos eleitos e dos reprovados, e o faz desta maneira [Rm 9.11-13]: “E ainda não eram os gêmeos nascidos, nem tinham praticado o bem ou o mal) para que o propósito de Deus, quanto à eleição, prevalecesse, não por obras, mas por aquele que chama), já fora dito a ela: o mais velho será servo do mais moço. Como está escrito: Amei Jacó, porém me aborreci de Esaú”. Que é que pretende aqueles que, obscurecendo essas palavras, atribuem algum lugar às obras em nossa eleição (quer anteriores quer futuras)? Isso é inverter completamente o que o apóstolo diz, pois, segundo este, a diferença existente entre os dois irmãos não depende em nenhum aspecto das suas obras, mas da pura e simples vocação de Deus. Sim, porquanto Deus determinou o que iria fazer antes de eles terem nascido. A sutileza utilizada pelos sofistas não escaparia ao conhecimento de Paulo, se tivesse algum fundamento. Mas, como ele sabia que Deus não poderia prever nada de bom no homem, senão o que deliberou dar-lhe pela graça da sua eleição, deixou de lado essa opinião perversa, que consiste em preferir as boas obras às sua causa e origem. Das palavras do apóstolo, deduzimos que a salvação dos que crêem funda-se no beneplácito da eleição de Deus, e que esta graça não é adquirida por boas obras, mas lhes vem da sua bondade gratuita. Elas nos propiciam também como que um espelho ou um quadro que representa esta verdade. Esaú e Jacó são irmãos, gerados dos mesmos pais, de uma mesma gestação, estando juntos no ventre de sua mãe antes de nascerem. Todas as coisas são semelhantes num e no outro; todavia, o juízo de Deus distingue entre eles, pois escolhe um e rejeitou o outro. Só restava a questão da primogenitura, que fazia que um fosse preferido ao outro. Mas mesmo isso foi deixado para trás; foi dado ao que nasceu por último o que foi gerado ao que nasceu primeiro.

10. Outros exemplos

Em muitos outros casos se vê que Deus, com deliberado propósito, desprezou a primogenitura a fim de extirpar da carne todo elemento de glória. Rejeitando Ismael, ligou o seu coração a Isaque; rebaixando Manasses, preferiu Efraim [Gn 17 e 48 (ver Gn21.12)]. Se alguém replicar que não devemos julgar questões relacionadas com a vida eterna recorrendo a coisas inferiores e levianas, e que é uma zombaria inferior que aquele que exaltado pela honra da primogenitura é adotado como participante da herança celestial (havendo alguns que não poupam nem mesmo o apóstolo Paulo, dizendo que abusou dos testemunhos da Escritura, aplicando-os a este assunto), respondo que o apóstolo não falou disso inconsideradamente, e não quis torcer o sentido dos testemunhos da Escrituras; mas ele enxergava o que esse tipo de gente incapaz de considerar. É que Deus quis, por meio de um sinal corporal, representar a eleição espiritual de Jacó, a qual, noutro aspecto, estava oculta em seu conselho secreto. Porque, se não aplicássemos à vida futura a primogenitura que foi dada a Jaci, a Bênção que ele recebeu seria totalmente ridícula, porque não teria outra coisa senão total miséria e calamidade.

Vendo, pois, o apóstolo Paulo que Deus, por meio dessa bênção exterior testificou sua bênção eterna, que ele preparou em seu reino celestial para o seu servo, não teve dúvida nenhuma em tomar o argumento de que Jacó recebeu primogenitura para provar que ele foi escolhido por Deus. Portanto, Jacó foi eleito, Esaú tendo sido repudiando, e assim é feita distinção entre eles pela eleição de Deus – apesar de não haver diferença em seus méritos.

11. Qual o motivo disso?

Se alguém pedir a razão disso, Paulo lhe dará; é o que Deus disse a Moisés: “Terei misericórdia de quem eu tiver misericórdia e me compadecerei de quem em me compadecer” [Ex 33.19 (Rm 9.14-16)]. E que será que isso quer dizer? Claro está que o Senhor afirma explicitamente que não encontra em nós nenhuma razão pela qual deva fazer-nos bem, mas que se baseia totalmente em sua misericórdia, pelo que a salvação dos seus é sua obra, de mais ninguém.

Aqui são apenas as nove primeiras páginas do capítulo VIII da Institutas – Edição especial. Calvino continua a desenvolver este assunto de forma maravilhosa nas páginas seguintes. Compre este maravilhoso livro em http://www.cep.org.br/ de seqüência a leitura.

Autor: João Calvino
Fonte: As Institutas da Religião Cristã, edição especial, ed. Cultura Cristã, Vol 3, pg 37-46.

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