terça-feira, 25 de setembro de 2007

A Escritura fala do único Deus vivo e verdadeiro

A Escritura fala do único Deus vivo e verdadeiro
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Temos ensinado que o conhecimento de Deus é amplamente demonstrado na obra de criação e composição do universo, em todas as suas criaturas, e que, todavia, será exposto com maior por sua Palavra. Devemos considerar agora se Deus se apresenta na Escritura tal qual o vimos figurado em suas obras. Este assunto será longo, se for tratado diligentemente. Mas eu me contento em oferecer um resumo pelo qual a consciência dos fiéis seja admoestada de modo a perceberem eles quão essencial é que sejam levados a conhecer a Deus na Escritura e sejam dirigidos a um objetivo certo e definido de maneira que o alcancem.

Primeiro, consideremos que o Senhor se revela com o Deus que, após haver criado os céus e a terra, espalhou seu graça e sua benevolência sobre todo o gênero humano. Todavia, sempre e perpetuamente nutriu, sustentou e manteve a sua graça especial para com os crentes, e, em reciprocidade, eles o conhecem e lhe prestam honra. Igualmente, ele põe diante dos olhos deles (como, digamos, numa pintura), qual é a constância da sua bondade entre os fiéis, com que cuidado providencial ele vela por eles, quão inclinado se mostra a lhes fazer o bem, qual o poder do seu socorro, quão ardentemente os ama, como é grande a sua paciência, pela qual suporta as faltas deles, que paternal clemência demonstra quando os castiga, e que perene segurança lhes dá de suas promessas.

Por outro lado, ele manifesta o seu rigor na penalidade imposta aos pecadores, mostra como se inflama a sua terrível ira, depois de haver suportado afronta durante muito tempo, e os faz sentir quanto poder tem a sua mão para os confundir e os dissipar.

Essa descrição ajusta-se bem ao que dissemos que se mostra na figura universal do mundo. Contudo, em certo lugar, a propriedade dessa descrição é expressa de modo que sua face nos é apresentada vividamente, expondo-se patente à nossa contemplação. Sim, pois, na descrição feita por Moisés, parece que ele quis abranger num resumo tudo quanto se permite que os homens conheçam de Deus. Diz ele [Ex 34.6,7]: “Senhor, Senhor, Deus compassivo, clemente e longânimo, e grande em misericórdia e fidelidade: que guarda a misericórdia em mil gerações, que perdoa a iniqüidade, a transgressão e o pecado, ainda que não inocenta o culpado, e visita a iniqüidade dos pais nos filhos e nos filhos dos filhos, até à terceira e quarta geração”. Pelo que devemos considerar que a sua eternidade e a sua essência, residente nele próprio, são anunciadas por este nome, que aparece duas vezes no texto hebraico da passagem acima transcrita (nome que equivale a dizer: “aquele que é único”); sendo que as suas virtudes nos são trazidas à lembrança, virtudes que demonstram, não que ele se fecha em si mesmo, mas que ele está entre nós. E isso de tal maneira que este conhecimento se apóia mais em viva experiência que em vã especulação.

Além disso, vemos que aqui são enumeradas para nós as virtudes que temos visto resplender no céu e na terra, a saber: a clemência, a bondade, a misericórdia, a justiça, o juízo e a verdade. Porque o seu poder está incluído na palavra hebraica empregada como seu terceiro nome ou título, que equivale a dizer como as virtudes nele se contêm. Os profetas também nos oferecem os mesmos títulos quando querem exaltar e esclarecer o seu santo nome. Para não nos constrangermos por acumular muitas passagens, no momento será suficiente citar um Salmo no qual a soma total das suas propriedades é recitada com tal diligência que se pode dizer que nada é omitido [Ex 34.3,74]. E, todavia, nada ali é mencionado que não se possa contemplar nas criaturas, de tal maneira Deus tanto se nos dá a sentir por experiência quanto se nos revela por sua Palavra. Em Jeremias, onde Deus declara que deseja ser conhecido por nós, a descrição não é tão clara e completa [Jr 9.24]. Mas praticamente vem a dar na mesma: “O que se gloriar, glorie-se nisto: em me conhecer e saber que eu sou o Senhor e faço misericórdia, juízo e justiça na terra”. Estas três coisas são as que principalmente precisamos conhecer. Sua misericórdia, na qual se firma a salvação de todos nós; o juízo de Deus, que diariamente ele exerce sobre os maus e que, ainda mais rigorosamente, lhes está reservado como castigo eterno; e sua justiça, pela qual os seus fiéis são por ele preservados e tratados com benignidade. Compreendidas essas três coisas, o profeta dá testemunho de que temos abundantes motivos para gloriar-nos em Deus. Contudo, assim procedendo, não são omitidos o seu poder, a sua verdade, a sua santidade e a sua bondade. Sim, porque, como se poderia ter real entendimento da sua justiça, da sua misericórdia e do juízo por ele exercido, requisito indispensável, se esse conhecimento não estivesse fundamentado em sua verdade imutável? E como se poderia crer que ele governa a terra com justiça e juízo, sem o reconhecimento do seu poder?

De onde procede a sua misericórdia, senão da sua bondade? Finalmente, se todos os seus caminhos são misericórdia, juízo e justiça. Igualmente neles rebrilha a santidade do seu ser. Pois bem, o conhecimento de Deus, que nos é apresentado na Escritura, não tem outra finalidade que não a que se manifesta em suas criaturas, qual seja: primeiramente, induzir-nos ao temor de Deus; em seguida, a que ponhamos nele a nossa confiança, para que aprendamos a servi-lo e honrá-lo com uma vida inculpável e com uma obediência não fingida; e assim descansemos em sua bondade.

Todavia, porque Deus não se deixa ver diretamente e de perto, a não ser na face de Cristo, a qual só se pode contemplar com os olhos da fé, o que resta dizer sobre o conhecimento de Deus será melhor protelar até o ligar em que estaremos falando sobre o entendimento dessa fé.
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Autor: João CalvinoFonte: As Institutas da Religião Cristã, edição especial, ed. Cultura Cristã, Vol 1, pg 78-80.

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