Capítulo I - páginas 55-56.
O Conhecimento de Deus
1. A sabedoria integral está no conhecimento de Deus e do homem
[1536] A soma total da nossa sabedoria, a que merece o nome de sabedoria verdadeira e certa, abrange estas duas partes: o conhecimento que se pode ter de Deus, e o de nós mesmos.[1539] Quanto ao primeiro, deve-se mostrar não somente que há um só Deus, a quem é necessário que todos prestem honra e adorem, mas também que ele é a fonte de toda verdade, sabedoria, bondade, justiça, juízo, misericórdia, poder e santidade, para que dele aprendamos a ouvir e a esperar todas as coisas. Deve-se, pois, reconhecer, com louvor e ação de graças, que tudo dele procede.
Quanto ao segundo, revela a nossa ignorância, miséria e maldade, induz-nos à humildade, à não confiança própria e ao desprezo de nós mesmos; inflama em nós o desejo de buscar a Deus, certos de que nele repousa todo o nosso bem, do qual nos vemos vazios e desnudos.
Ora, não é fácil discernir qual dos dois precede o outro e o produz. Porque, visto que o homem está repleto de qualidade indignas, mal nos contemplamos e tomamos conhecimento das nossas péssimas condições, e de imediato elevamos os olhos a Deus para que dele venha um pouco de conhecimento a seu respeito. Assim, graças ao sentimento que temos da nossa pequenez, da nossa insensatez e vaidade, e mesmo da nossa perversidade e corrupção, reconhecemos que a verdadeira grandeza, sabedoria, verdade, justiça e pureza estão em Deus.
Finalmente, somos impedidos por nossas maldades e fraquezas de considerar os bens do Senhor, e não podemos sequer aspirar com amoroso empenho aos bens divinos, enquanto não começarmos a ficar aborrecidos com nós mesmos. Pois, qual dos homens não descansa em si mesmo e em si mesmo não tem prazer? Quem não descansa desse modo e durante todo o tempo em que não se conhecendo bem mostra-se satisfeito com as suas capacidades e ignora as suas miseráveis condições? Porquanto, cada um de nós não somente é instigado pelo conhecimento de si próprio a buscar a Deus, mas é como que levado pela mão ao seu encontro.
2. Conhecer o homem depende de conhecer a Deus
Por outro lado, é notório que o homem jamais pode ter claro conhecimento de si mesmo, se primeiramente não contemplar a face do Senhor, e então descer para examinar a si mesmo. Porque esta arrogância está arraigada em todos nós – sempre nos julgamos justos, verdadeiros, sábios e santos, a não ser que, havendo sinais evidentes, sejamos convencidos de que somos injustos, insensatos e impuros. Mas não seremos convencidos se só dermos atenção a nós mesmos, e não também ao Senhor, pois esta é a regra única à qual é necessário que se ajuste o julgamento que se queira fazer. Isso porque, uma vez que nós somos naturalmente inclinados à hipocrisia, em vez de contentar-nos com a verdade, ficamos muito satisfeitos com uma vã aparência de justiça. E, tendo em vista que não há nada em nós que não esteja gravemente contaminado por grosseira impureza, o que nos parece um pouco menos vil aceitamos como elevada pureza, enquanto mantemos o nosso espírito dentro dos limites da nossa condição humana, que é totalmente corrupta. É o que acontece com olhos só acostumados a verem a cor negra; uma brancura um tanto obscura ou mesmo acinzentada é, para esses olhos, a mais alva brancura. Todavia, menos se pode compreender as qualidades da alma e mais enganados seremos nessa compreensão, comparando-a com a nossa visão física. No entanto, quando em pleno dia olhamos para o solo ou para as coisas que estão ao nosso redor, achamos que a nossa visão é clara e firme. Mas quando elevamos o nosso olhar diretamente para o Sol, somos constrangidos a confessar que a excelente visão que tínhamos quando olhávamos a terra fica confusa, ofuscada pelo fulgor do Sol.
É o que acontece quando avaliamos os nossos poderes espirituais. Porque, enquanto a nossa contemplação vai ale da terra, ficamos satisfeitos com a nossa justiça, com a nossa sabedoria e com a nossa capacidade ou poder, e nos gratificamos e nos elogiamos a nós mesmos, pouco faltando para que nos consideramos semideuses. Mas se, uma vez que seja, pensarmos no Senhor e virmos a perfeição da sua justiça, da sua sabedoria e do seu poder, a cujo modelo devemos ajustar-nos, o que nos agrava parecendo justiça, logo veremos que não passa de uma grande iniqüidade, o que nos impressionava maravilhosamente sob título de sabedoria se revelará como loucura extrema, e o que tinha a aparência de capacidade se mostrará miserável fraqueza. Assim, o que em nós tem aparência de absoluta perfeição nem de longe se assemelha à pureza de Deus.
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Autor: João CalvinoFonte: As Institutas da Religião Cristã, edição especial, ed. Cultura Cristã, Vol 1, pg 55-56.
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